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Pimenta do Élbio - 05/10/10

[Galera, aqui é o Rafael. Estou escrevendo antes do texto do Prof. Élbio para agradecer, que mesmo hospitalizado em função de problemas renais, ele mandou um escrito que é sem dúvida, um dos melhores, senão o melhor já publicado aqui no blog. É um pouco longo, mas tenham certeza de que vale a pena a leitura!]

Por Élbio Porcellis
Apenas mais uma crônica

Escrita do hospital, lembrando de um “causo”que me foi contado como sendo absolutamente verídico, acontecido em uma cidade do nosso velho Rio Grande do Sul, país que faz fronteira com o Uruguai, Argentina e Brasil.

Os nomes dos envolvidos podem parecer estranhos ou até mesmo fictícios aos que tem menos de cinquenta anos, mas eu garanto a vocês que houve uma época em que os pais batizavam seus bebês lindos e bochechudos com tais nomes.

Em uma pequena cidade interiorana de economia exclusivamente baseada no setor primário, as moças, desde bem jovens aprendem a cozinhar, costurar, bordar, enfim… essas coisas que eram consideradas fundamentais no início do século passado.

Os rapazes, por sua vez, desde bem cedo aprendem as lides campeiras ou, se moram na parte mais urbana, se assim podemos dizer, da cidade, se tornam aprendizes de seus avós em ofícios que vão sendo mantidos em âmbito familiar.

Os namoros começam de duas formas: os jovens se conhecem ou quando a moça vai ao local comercial onde o rapaz trabalha ou, mais provavelmente, mas missas dominicais da igreja local.

Pois foi numa cidadezinha assim que Vitalino, jovem bem apessoado de dezessete anos, herdeiro da farmácia que seu pai herdou de seu avô, conheceu Maria Gorete, linda menina que morava em uma cidade maior, sob severos cuidados de uma tia solterona, estudando para se tornar professora, uma das pouquíssimas atividades profissionais toleradas pelos pais para suas filhas. A expressão recorrente é que “guria mulher” de bem que quer trabalhar só pode ser enfermeira ou professora.

Nos finais de semana, na sua pequena cidade, o programa não poderia ser outro: as missas do padre Chicão e as quermesses no salão paroquial (ou no pátio da igreja, dependendo do clima) que a comissão de senhoras da paróquia, todas viúvas e extremamente devotadas ao padre Chicão, promovem para subsidiar as intermináveis obras da paróquia.

Foi numa dessas quermesses que os olhos de Vitalino cruzaram com os de Maria Gorete, duas contas azuis. Um sentimento arrasador se apossou de ambos, de imediato. Desde esse dia eles sabiam que haviam nascido para viver juntos até o final dos dias, o Apocalipse de que o padre Chicão havia falado na missa daquela manhã.

Chamou seu amigo Ataliba e perguntou quem era a moça. Seu amigo arregalou os olhos apavorado:
- “A de vestido e olhos azuis”?

Vitalino assentiu e Ataliba chamou Aristides e Anastácio, amigos de ambos, para aconselhar Vitalino a desistir da loucura: Maria Gorete era filha de Araceli Borba, mais conhecido como “Tinhoso”, um homem tão violento que todas as pessoas da cidade nunca falam sobre a morte de Laudelino Moura.

Ele era conhecido como Laudelino Touro, por seu porte avantajado e descomunal força física. Arrastava um trator com os dentes e puxava, com uma corda amarrada ao pescoço, uma trilhadeira de arroz em apostas que invariavelmente ganhava.

Foi encontrado morto, sem nenhum golpe de arma, apenas com seu taurino pescoço que arrastava uma trilhadeira, partido, como um graveto, por mãos tão poderosas que ninguém comentava – nem mesmo em família – mas todos sabiam a quem pertenciam. No dia anterior ele havia negado a mão de sua filha Zuleica para “Tinhoso” Borba.

Sabendo disso, Vitalino aguardou a oportunidade para chegar no pai de Maria Gorete da maneira mais educada possível. Medo ele não tinha: afinal… era descendente de Arthur Amaral, herói da revolução de 93. O que ele não queria era errar uma ocasião que poderia ser única.

Isso se proporcionou quando as senhoras anunciaram um sarau de prendas. As moças seriam oficialmente “apresentadas à sociedade”. O esquema seria simples: as moças, por ordem alfabética, sentariam em mesas à volta da pista de dança, acompanhadas dos pais.

Cada rapaz chegaria à mesa da jovem pretendida – e ninguém tinha intenção de chegar na mesa do “Tinhoso”- recitaria uma quadrinha; se a moça aceitasse levantaria para dançar. Seria no fim de semana seguinte.

Vitalino passou dias ensaiando sua quadrinha. Foi a espera mais dolorosa de sua vida. O tempo teimava em se arrastar. Até que chegou o domingo: ansioso, barbeou-se e tomou banho duas vezes, vestiu sua pilcha de gala e foi para o salão paroquial.

Finalmente, começou o sarau. O primeiro a se encaminhar foi Brasilino, um primo de Vitalino, que foi até Adelaide, a primeira na organização das mesas. Recitou:

“Lá atrás daquele morro
Passa boi passa boiada
Também passa linda moça
Sempre muito perfumada”

Vitalino sorriu. A dele seria mais bonita.

Veio o próximo pretendente, Ramão, e foi até Cordélia, na segunda mesa.

“Joguei um limão de cheiro
Por cima daquela ponte
Caiu nas mãos de uma moça
Que eu admiro um monte”

Vitalino gelou o sangue: era a quadrinha que ele havia ensaiado.

A cerimônia prosseguiu. Cada vez mais se aproximava a letra “M”de Maria Gorete, e todas as quadrinhas que Vitalino conhecia já haviam sido ditas pelos outros.

Ocorreu-lhe, então, uma idéia: improvisaria uma pequena trova. Chegou sua vez. Todos os amigos olhavam, alternadamente, para ele e para o “Tinhoso”.

Caminhou com passo firme e peito altivo e recitou:

“Linda Maria Gorete
Pele que não conhece gilete
Desejo que tu aceites
Me fazer um bo..."

POU, POU, POU! O revólver do “Tinhoso” fumegava e Vitalino estava caído, num estertor de sangue, com dois balaços no peito e um na garganta.

Tentava dizer alguma coisa. Padre Chicão tentou ouvir. Era o fim da trova:

“...me fazer um bo...cado feliz
Dando à minha vida o rumo
Que teu sorriso promete”

Não era uma quadrinha. Era uma sextilha.

Maldita ignorância do “Tinhoso”...

Quem souber que conte outra.

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